segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O mundo e a pós-modernidade

Pós-identidade

Não é fácil identificar, com toda a certeza, em que lugar da história fica a transição entre o que é moderno e o que é pós-moderno, ou mesmo se essa transição existe, independente da instância. Seja nas artes, na tecnologia, na ciência ou mesmo na identidade cultural e individual de cada sujeito. Para muitos, a pós-modernidade não passa de uma modernidade tardia, ou uma continuação da modernidade no auge do capitalismo e da industrialização. É visível, no entanto, que existem acontecimentos na segunda metade do século XX que remetem a uma ruptura com antigos padrões, e que podemos identificar como marcos do início da “pós-identidade”. Chamo assim como forma figurativa em que tomo a identidade como uma representação determinada, ou seja, um conjunto de conceitos, valores e idéias que um indivíduo pode atribuir a si para se localizar em um meio social. No entanto, esse conjunto tem sido fragmentado devido aos avanços tecnológicos, à divergência de idéias, à pluralidade de conceitos e à ampla difusão das culturas de massa através da mídia. Não existe mais uma identidade, mas identidades. O fácil acesso à informação faz com que hoje se possa defender fervorosamente um ideal que, amanhã, já estará dissolvido e esquecido no inconsciente de entusiastas. E é isso o que está além de uma definição propriamente dita de identidade pós-moderna, é o que eu, novamente, chamaria de “pós-identidade”.

Ser ou não ser, tanto faz

A modernidade nasceu de uma importante ruptura com o passado. Essa ruptura é associada à valorização do humano e do racional, que são as bases do Iluminismo. Para Stuart Hall, o sujeito do iluminismo “estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior” (HALL, 1999: p. 10). No entanto, com o passar do tempo, a sociedade se deparou com novas visões que brotaram de movimentos estudantis, juvenis, antibélicos, feministas, raciais, e dentre outros de cunho social. A rebeldia e a contracultura, que queriam abandonar velhos estereótipos e romper com as antigas vanguardas, foram os primeiros passos para a multi-identidade.

A intensidade dos discursos e a teatralidade desses movimentos atraíram a atenção dos jovens consumidores da época, até o ponto em que saturaram e se tornaram tão superficiais quanto os produtos vinculados em propagandas e comerciais de televisão.

Quando se pensava que todos os limites para as artes já haviam sido alcançados, acontece outra ruptura com o modernismo. A arte utilitária, limpa e funcional deixa de lado esses papéis para dar espaço à desordem, ao minimalismo e à arte pela arte. É o que muitos gostam de chamar de banalização da arte, que se populariza e atinge as grandes massas, como é o exemplo da pop art e, mais tarde, da arte digital.

Realidade e Consumo

A livre circulação de informações, idéias, serviços e bens de consumo possibilitou tanto a expansão do alcance da globalização e do capitalismo, quanto a compressão do espaço e do tempo. A tecnologia herdada da primeira e da segunda guerra mundial permitiu que fosse possível unir pessoas de diversas localizações e difundir imagens de várias partes do mundo, em que a televisão via satélite e a internet são os principais meios de comunicação. Não é preciso sair da poltrona para ver como são os monumentos de Roma, por exemplo. E o capitalismo atingiu com força esse setor das comunicações, e mistifica o consumo ao fazer da propaganda palco para a espetacularização de seus produtos e da cultura de massa. Cada vez mais essa mídia cria modelos prontos de conduta, como a família feliz e unida das propagandas de margarina, a elegância e sofisticação dos outdoors de cosméticos e o corpo atrativo e saudável dos comerciais de cerveja.

Não se vendem mais produtos, e sim imagens. O surrealismo midiático imprimiu etiquetas que rotulam as pessoas e dizem como elas devem se comportar, e concede, em troca, a ilusão de que um ou outro produto tem a capacidade de proporcionar satisfação e felicidade plenas, ou que é preciso seguir os ideais transmitidos pela imagem para atingir a sua auto-realização e alimentar o narcisismo individual. Qualquer reflexão a respeito dessas relações e outros assuntos mais profundos pode se tornar um incômodo, e as causas sociais já não têm mais tantos adeptos.

O fantasma pós-moderno

O fantasma pós-moderno de Jair Ferreira dos Santos é resultado de uma ressaca desse bombardeio de imagens e informações. “Sua vida se fragmenta desordenadamente em imagens, dígitos e signos - tudo leve e sem substância, como um fantasma. Nenhuma revolta. Entre a apatia e a satisfação, você dorme” (SANTOS, 2000: p. 9). A sociedade pós-industrial passa a ser baseada na estetização da realidade e na superestimação da imagem, e ignora antigos valores e sentidos que não se enquadram nesse processo. Palavras e sentimentos são reduzidos a clichês e os olhos da humanidade se fecham para os mistérios do mundo, e deixam a cargo da ciência desvendá-los e destruir seus encantos. Os limites entre realidade e ficção se misturam cada vez mais, e parece que se vive com maior intensidade aquilo que existe através da tela da televisão ou mesmo de um vídeo game portátil. Resumida a simulacros, a vida pós-moderna se desprende dos compromissos e das causas sociais para dar espaço às tecnologias e ao consumo personalizado, que esconde os processos iniciais que muitas vezes envolvem exploração de mão-de-obra barata, trabalho infantil e a morte de milhares de animais. Coisas que quase ninguém se interessa em saber.

Pra não dizer que não falei das flores

Em contrapartida aos argumentos críticos, a tecnologia pode ser uma poderosa aliada quando bem administrada. Facilita a difusão de idéias e informações que podem ser essenciais para a formação de um indivíduo, como programas e sites culturais, enciclopédias e livros on-line e mesmo o computador utilizado para escrever este e outros ensaios. A amplitude de idéias e a pluralidade do pós-modernismo abrem portas para novas manifestações artísticas que fogem da mesmice das obras estáticas e transcendem os limites da interação entre o observador e a obra.

A identidade multilateral também pode ser um passo considerável para a aceitação das diferenças étnicas, culturais, sociais e de gênero entre as pessoas . No entanto, a prevalência é pessimista no que diz respeito ao futuro da personalidade do indivíduo pós-moderno. A tendência é se deixar levar pelo fluxo da superficialidade, e resta apenas esperar que o rumo da história não se resuma a simples imagens e representações.


Bibliografia

ARBEX, José; TOGNOLI, Cláudio Júlio. O mundo pós-moderno. São Paulo: Scipione, 1996.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
LAMPERT, Ernani (org.). Pós-modernidade e conhecimento: educação, sociedade, ambiente e comportamento humano. Porto Alegre: Sulina, 2005 Ernani Lampert (org), Porto Alegre, Editora Sulina, 2005.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2000.
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI. No loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Adiado o espetáculo

Pela terceira vez este ano, a audiência pública que tratará de um projeto de lei que proíbe o uso de animais em circos, prevista para o dia 4 de novembro, é adiada. Existe um lobby pesado por parte dos donos de circo, que querem convencer os parlamentares a não aprovarem o projeto de lei, alegando que os protetores dos animais querem acabar com a tradição das artes circenses. No entanto, essa é uma forma de ofuscar o trabalho dos artistas de circo, o que faz dos animais, a maioria em risco de extinção, uma forma de exibicionismo e um desrespeito ao animal, que, fora de seu habitat natural, é submetido a truques que vão contra seu comportamento selvagem.

E para não dizer que é impossível não utilizar animais, o Circo Mágico de Moscou está em Brasília para dar o exemplo. Os espetáculos não utilizam mais animais, que foram entregues voluntariamente pelo circo a instituições de proteção, e hoje estão na luta contra essa exploração. “Circo sem animal é mais legal” é um projeto conjunto entre o Circo Mágico de Moscou, ONGs e ambientalistas, com apresentações que acontecem do dia 17 de outubro até 8 de novembro, no estádio do Mané Garrincha.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Leitura libertária

Há um mês, a rotina de aproximadamente 400 detentas mudou de forma crucial. Desde setembro, o que antes era conhecido como “ponto cego” do presídio feminino deixou de ser um esconderijo de tramas para se tornar o principal ponto de interesse das presas: a Biblioteca Maria da Penha. O acervo conta com cerca de 3 mil livros, adquiridos através de doações da comunidade, e é coordenado por Maria Luzeni Soares, 40 anos de idade e advogada criminal, condenada por cometer crime de estelionato. Os banhos de sol no presídio feminino deram um tempo aos esportes e se tornaram espaço para verdadeiras viagens através da imaginação das detentas, que ocupam todos os espaços disponíveis no concreto do pátio sentadas e afundadas na leitura.

A verdadeira liberdade está no pensamento e nos sonhos das mulheres, em sua maioria jovens presas por tráfico que mal abandonaram a adolescência, que encontram, nos livros, uma forma de se esquecer do mundo. A rotina e o comportamento delas não foi mais o mesmo. Até as brigas diminuíram. Agora, os livros são a principal atividade das detentas no presídio, levando-as a um estado de verdadeira liberdade: a liberdade das idéias e da imaginação.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Aceitação do inaceitável

Esta quarta-feira (8) tornou definitiva a decisão do governo quando o presidente Luis Inácio Lula da Silva sancionou a Lei Arouca. Ela prevê a regulamentação do uso de animais como cobaias em experimentações e pesquisas científicas no país, e há 13 anos perambula pelo Senado, onde, em 9 de setembro, conseguiu unanimidade dos votos pela sua aprovação. Enquanto a União Européia avança e determina o fim dos testes em animais na produção de cosméticos em 2009, o governo brasileiro ignora a opinião do público e aprova uma lei que nem mesmo tem o conhecimento de parte significante da população. A mobilização de protetores dos animais realizada no dia 18 de setembro em frente ao Congresso, que estendia um varal com cerca de 23 mil assinaturas contra a aprovação da lei sem que haja discussão com o público, não teve a visibilidade merecida. Nada de diferente para o Brasil, que sempre foi lixo industrial dos países desenvolvidos e passará a terceirizar essa prática, já condenável em outras partes do mundo.

A realidade mórbida da vivissecção e experimentação animal ainda é ofuscada pelo interesse de cientistas e indústrias farmacêuticas. A desculpa utilizada é a necessidade da regulamentação da prática e do estabelecimento de normas e critérios éticos – fantasia criada para iludir o povo que, ingênuo, busca uma relação harmoniosa entre seres humanos e a natureza. Mas enquanto houver exploração, essa relação não existe. Não há como falar em ética quando o que está em jogo é a vida e a dignidade de outra criatura viva. O filósofo Albert Schweitzer enuncia isso perfeitamente: “o erro da ética até o momento tem sido a crença de que só se deva aplicá-la em relação aos homens”. A solução para esse problema só pode ser sequer pensada quando o ser humano abandonar o centro do mundo para dar espaço a uma nova perspectiva não-antropocêntrica.

Brasilialidade

A maioria das cidades pipocam no mundo. Elas acontecem. Brasília não acontece. Brasília já foi construída e formatada para existir. Mas que Brasília é essa, capital do Brasil? São tantas Brasílias que eu ainda não conheço todas. Conheço aquela Brasília da cúpula, fechada, que se limita às extensões das “asas” cuja denominação nem mesmo existe em seu projeto original – a menos que cruz tenha asa e eu não saiba. Conheço a Brasília limpa e livre visualmente, a Brasília do fácil transporte (a pé), dos centtros comerciais e administrativos, da beleza incontestável de um céu aberto, a Brasília que o dinheiro pode mostrar. A Brasília da miséria passa despercebida. A Brasília dos cidadãos que dormem na rua, das crianças que trabalham no sinal, das mulheres que são vendidas na rodoviária, da prostituição, da violência, dos assaltos, da corrupção e dos assassinatos - dessa Brasília, a gente esquece.

Mas existem outras Brasílias também, que só agora estou descobrindo. A Brasília das políticas, das peças, das músicas, dos cinemas, das conquistas e das lutas sociais. Existe a Brasília dos prédios mais altos, a das casas baixas, dos aglomerados, dos espaços abertos, a Brasília de fora da cruz e a que fica aqui do lado, a Brasília bonita de parques e flores, e a Brasília incógnita, dos farrapos e vidros quebrados. São tantas brasilialidades, que eu acho que a cidade é uma só: é ela e todas as outras.

Quem foi que disse que Brasília não acontece? Ela acontece, sim. Aconteceu e eu nem vi.